É intencional: Reflexão de um jovem venezuelano em 2017 diante à desesperança
Sei que hoje, como ontem, a nossa coragem, a nossa esperança, a nossa motivação e o nosso desejo de ver um país melhor, com direitos para todos, com segurança, com futuro e com paz estão cada vez mais distantes. Todos esses desejos são constantemente atacados, é difícil pensar em algo alegre quando vivemos assediados pela ideia de que a qualquer momento você pode receber a ligação de um parente, um amigo, um colega, que está deixando o país ou que um amigo próximo acabou de morrer por falta de remédios. Tudo isso e muito mais, nos atormenta diariamente, mas atenção a isso: sentir-se assim é a principal intenção de um governo autoritário, que você sinta que isso te torna vulnerável, te torna dominável, e um a um de nós quando nos sentimos assim nos tornamos controláveis, porque você está dando seu espaço emocional e mental para um governo que já está ocupando seu espaço físico, mas isso não é suficiente porque ele precisa vê-lo vulnerável, sem identidade.
Quando o governo quer suas emoções, quer seu futuro, quer seus desejos e sentimentos, tanto que faz você odiá-lo materialmente, porque você não recebe comida, você não recebe remédios, mas essa experiência você traz à sua mente, então, diante do descontentamento, emocionalmente você cria um estado de entrega e submissão pelas migalhas que o governo lhe dá (bolsas de comida, bônus de dinheiro, entre outros). Dessa forma, você é pego pela sensação de que "isso é o que existe" e não ter opções o torna mais dócil, eu te digo: é intencional.
Quando falamos em ditadura, nos aspectos práticos, políticos e sociais que é aquilo que é contrário à Democracia, mas quando o governo entra em sua mente, ele faz você renunciar tanto que você começa a amar e justificar suas ações. Mas no nosso caso devemos reforzar que isto é uma neoditadura, porque impõe frases como: "os dois lados são iguais, a oposição é inútil, a política é suja etc." através dos meios de comunicação tradicionais, meios que estão ameaçados de serem fechados se não divulgarem essas diretrizes de comunicação. Neoditadura porque usa eleições, sim, digo-lhes: a democracia não é só eleições, na verdade, as eleições podem resultar como um dispositivo para manter o poder em neoditaduras. Mais uma vez, repito: é intencional.
A ditadura deste regime não é apenas física (maus-tratos, violações de direitos humanos) como foram concebidas, esta situação é uma neoditadura, por seu eficiente exercício de controle social e eleitoral da política venezuelana, tem exercido seu papel hegemonicamente na construção de um modelo político em que apenas o espectro chavista, madurista e a esquerda que o apoia têm o direito "histórico" de governar. Essa política tem sido hegemônica, de várias frentes, culturais, políticas, de classe etc. Estamos vendo como se forma aqui um superestado, um superpartido, um superlíder, que se impõe a todos. Infelizmente, muitos acabam aceitando, a fome e a falta de acesso aos serviços públicos se tornam um mecanismo de dominação, desta maneira milhares de venezuelanos acabam permitindo esse flagelo por omissão e desgaste. Essa neoditadura quer que a gente opte sempre pelo subsídio que optar por pagar tudo do nosso bolso, e exercer a liberdade de escolha, obriga ir de graça do que pagar uma passagem, mas nao ajuda que o Estado dê ferramentas que torne você independente de você forjar um caminho fora do subsídio humilhante, essa neoditadura não acredita na liberdade do espírito, seus direitos fazem com que eles vejam como benefícios de uma Revolução. E essa relação de dependência é a ditadura mental.
Se algo está claro para nós, é que nada é casual em uma ditadura: tudo é intencional. Adentrar nas nossas emoções e fazer-nos desmotivar ou emigrar, são formas de acabar com as nossas hipóteses de melhorar este país. As ditaduras evitam rebeliões sociais, mas estão preparadas para reprimi-las, por exemplo: os recentes protestos (2017) não deixaram nada além de jovens mortos, decepção, incoerência política e a desolação de se sentir abandonado em nosso país; são razões que nos levam a permanecer estáticos.
Um ditador não reconhece outra maneira de pensar e agir além daquelas que ele estabelece como critério normalizadores, como dizer que quem não é chavista é apátrida. O ditador quer te convidar pra jogar numa praça publica é fazê-lo com as regras que ele criou, com os recursos de todos nós, mas com as regras dele. Querer acabar com uma ditadura em um único jogo nessas condições, é uma ilusão arranjada ali para que você desanime quando perde o jogo, e seu pensamento de luta desista. Uma neoditadura, por sua vez, não é um governo flexível; no entanto, mostra cenários de fraqueza, insinuando que é possível desmontá-la fazendo eleições "transparentes" para que você se mobilize contra ela: havendo a justificativa internacional da "liberdade de expressão". É intencional.
Sabemos que até as classes populares governistas estão passando por dificuldades, o que as leva a não se revoltar? Por que não pensam como nós e agem em benefício da República e não do governo? Pois bem, um ditador te ensina a amar, mesmo que ele seja o pior, e te faz olhar com indiferença para quem não pensa como você, nem eu, nem como nós. Vale lembrar que o governo está confortável com os altos preços dos alimentos tradicionais e de primeira necessidade, o que garante o envio à bolsa de comida ou a caixa do CLAP (caixa de comida que o governo vende ou dá) porque sua vantagem sobre ter o controle total do que entrar e sai no país, o torna super-poderoso.
Uma neoditadura como essa cria espaços de "debates" para o confronto entre companheiros versus apátridas, cria um clima de intolerância permanente, que nos deixa cansados do mesmo, e sempre encontra em cada decisão um tipo de resignação.
Essa neoditadura aperfeiçoou sua 4ª técnica republicana, porque exacerbou a corrupção, o compadrio, o clientelismo, tanto é que nos permeou essa cultura que agora para qualquer procedimento numa instituição do Estado é necessário um contato de um amigo, um amigo que conhece um amigo, e assim a cadeia se estende. É intencional.
Essa neoditadura nos fez esperar por um "líder" salvador, que supere opositores e oficialistas, essa forma messiânica de pensar nos prendeu, estamos perdendo tempo, cada um de nós pode ser a mudança, silenciosos não saímos dessa. Pois quando dizemos: um homem diferente tem que aparecer, estamos dando tempo para a neoditadura colocá-lo lá ao invés de nós. É intencional.
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